Analise e comparação entre os textos de Lacroix e Derathé

Ana Érika Pires Leão

Lacroix toma como base para a construção de seu texto sobre a natureza da consciência em Rousseau duas obras rousseaunianas. Uma é a Carta a Senhor de Beaumont onde Rousseau expõe sobre a sua concepção de consciência e a origem desta faculdade. A outra, as Confissões, ele utiliza mais especificamente a passagem em que Rousseau deixa que Marion seja condenada por um crime que ela não cometeu. É neste exemplo que Lacroix ilustra o que seria então o problema da consciência.
                Seguindo a mesma ordem da construção textual de Lacroix, será tratado primeiramente da questão da natureza da consciência, ou seja, do que é e como ela surge no homem. Depois será analisado o problema da consciência e sua relação com a razão e o sentimento. Pois, segundo Lacroix, há na concepção de Rousseau uma relação entre a consciência, o sentimento e a razão.
                Na primeira parte do texto, intitulada “A natureza da consciência” Lacroix considera que na concepção rousseauniana sobre a consciência, esta faculdade aparece como uma derivação do amor de si. Princípio inato presente no homem primitivo que conduz todo ser a sua auto conservação. Lacroix, chega a tal conclusão levando em consideração o trecho da Carta a Sr. de Beaumont em que Rousseau coloca: “este último amor [amor de si], desenvolvido e tornado ativo, recebe o nome de consciência” (Rousseau, 2005, p. 48 ). Assim, a consciênciaparece ser para Rousseau um segundo estágio do amor de si. Pois, neste mesmo texto o genebrino coloca ainda, que o amor de si é dividido em duas partes. O ser sensível, que visa o bem estar do corpo, e o amor pela ordem, que é o ser inteligente, que visa o bem estar da alma. Que para tomar o nome de consciência necessita da ação da perfectibilidade. Esta é a faculdade que torna possível o desenvolvimento das demais faculdades.
                Segundo o que Rousseau escrevena Carta ao Sr. de Beaumont, é pela ação da faculdade do aperfeiçoamento que o amor de si poderá desenvolver-se, tornando-se a consciência. Mas é também através da ação da perfectibilidade que a consciência poderá agir. Pois ela “só se desenvolve e age em conjunto com as luzes do homem” (ROUSSEAU, 2005 p. 48). Assim, pode-se compreender que para a ação da consciência parece ser necessário que o homem saia do estado de natureza para o estado de sociedade. Ou seja, desperte em sua natureza as “luzes” que o leva a conhecer a “ordem”, que será amada pela consciência (Cf. ROUSSEAU, 2005, P. 48).
                Então o despertar da consciência é, segundo Lacroix,o resultado de uma sequencia de fatos que leva a mudanças na natureza humana. Deste ponto de vista a natureza não é um conceito flexível em Rousseau, pois ela é propriamente uma norma (Cf. LACROIX, 1978, p. 85). Assim, todo homem possui a mesma natureza e esta seguirá o mesmo percurso para desenvolver-se tendo como condição a ação da faculdade do aperfeiçoamento. Segundo Lacroix, é também pela ação desta faculdade que os problemas da natureza humana surgem. Pois, sendo esta a faculdade dos contrários (Cf. LACROIX, p. 82) ela nos permite tanto o desenvolvimento das demais faculdades como também nos fornece o poder de escolha, que tanto pode ser o bem quanto o mal. Assim, parece que Lacroix encontra na possibilidade da ilimitação humana a possibilidade também da sua desnaturação. Pois, apesar de todo homem possuir em sua natureza a tendência a escolher do bem, ele também poderá escolher o seu oposto.
                Além disso, ao tornar o homem apto a ser aquilo que ele não era em um momento anterior, a perfectibilidade leva-o, juntamente com outras condições e circunstancias naturais, ao estado de sociedade. Neste estado todo homem será conduzido a comparar-se. E se comparando ele irá se preferir (Cf. LACROIX, p. 84). Assim, o amor de si de cada indivíduo será levado a transformar-se em amor-próprio, sentimento egoísta e que induz cada um a preferir-se mais a si que ao outro, desejando sempre o mal do seu semelhante.É exatamente desta forma que Rousseau age quando na iminência de ser acusado por ter roubado uma fita, culpa Marion e a deixa ser punida em seu lugar pelo crime que não cometeu. É este exemplo que Lacroix utiliza em seu texto para demonstrar que o problema da consciência está na relação da natureza e da história.
                Lacroix explica esta relação pelo fato de que com a instituição da propriedade, e consequentemente, do “espírito de proprietário” (LACROIX, 1978, p. 87) surgeà desigualdade e com ela a injustiça que leva todo amor de si a se transformar em amor próprio. Assim, a consciência que tem naturalmente a tendência para o bem, é desvirtuada e deforma-se diante das deficiências sociais. Pois, tal faculdadenão condiz com mentira e fingimentos. A consciência ama a verdade. Para que o homem mostre a sua consciência basta que ele mostre aquilo que realmente é, parecer o que é (Cf. LACROIX, p. 90). Porém, para Lacroix a consciência estará sempre apta a se refazer. Para isso basta então o isolamento e por ela o homem terá acesso a sua verdadeira consciência que é a verdade primeira.
                Na segunda parte do texto intitulada de “Consciência, sentimento e razão” Lacroix toma como base para a construção dessa reflexão as seguintes obras rousseaunianas: Emílio, mais especificamente, a Profissão de Fé do Vigário Saboiano e as Cartas Morais.Lacroix percebe que há na concepção rousseauniana sobre a consciência uma intima ligação com o sentimento. Os sentimentos segundo ele são as verdades do coração que são exprimidas pela consciência (Cf. ROUSSEAU, p. 92).Assim, a consciência em Rousseau, segundo Lacroix é,antes de mais nada, um sentimento. Sentimento que vem do coração do homem e que exprime o que há de divino na natureza humana. Porém, além de ser sentimento ela também é julgamento. É por este motivo, que Lacroix parece entender que em Rousseau há uma consciência que é sentimento, aquela que sente sem julgar ou fazer uso da razão, e uma consciência que é esclarecida pela razão, que julga o bem e o mal. Assim, se a consciência sentimento ama o bem é porque a razão o conhece. Isso leva Lacroix a concluir que entre a consciência e o sentimento Rousseau ver uma intima relação (Cf. LACROIX, p. 94). Ou seja, se a consciência ama o bem é porque ela sente no fundo de seu coração que é a ele que ela deve amar, mas ela não o reconhece enquanto bem, ela apenas o sente sem saber o que é. Assim, conhecer o bem é uma ação da razão. Desta maneira, a consciência é um juízo esclarecido pela razão.
                A razão aparece no texto de Lacroix como uma coadjuvante do sentimento perante a consciência. Porém, ele ressalva que a razão não é um raciocínio. O raciocínio é para Lacroix uma comparação das verdades conhecidas, ou a composição de outras verdades que ao comparar nos conhecemos.A razão é apenas uma ordenação das faculdades da alma(Cf. LACROIX, p. 96). O problema parece estar neste ponto. Raciocinamos e comparamos aquilo que conhecemos, e nem sempre comparamos o que é certo ou verdadeiro. Muitas vezes a comparação é feita a partir de opiniões, paixões, preconceitos, ou seja, objetos corrompidos que nos leva a um raciocínio corrompido, errado sobre as coisas.
                Em outros termos, pode-se sintetizar dizendo que quando o homem raciocina a partir de objetos irreais ele chagará a inverdades e assim seu raciocínio será irreal, resultando então, conclusões enganosas. A solução para este problema encontra-se, segundo Lacroix, na reforma da história, que ocorre a partir da reforma da educação e da reforma política. Essa reforma toma como ponto de partida a audição da consciência que deriva da sensibilidade positiva, que é a expressão do amor de si, em detrimento da sensibilidade negativa que deriva do amor próprio. Um exemplo colocado por Lacroix é o fato de o Emílio ter sido educado na natureza, tendo sua razão desenvolvida resultando na iluminação da consciência (Cf. Lacroix, p. 96). Esta reforma na educação passa então a ser também uma reforma política, pois, ao ponto em que cada ser passa então a conhecer aquilo que é verdadeiro e fruto da sensibilidade positiva, o pacto será feito a partir da vontade geral que tem como finalidade o interesse comum e não particular.
                Assim, toda reforma política depende da consciência, pois é pela consciência razãoque o homem conhece o que é bom. E é pela consciência sentimento que ele escolhe. É então da união das consciências que surge a verdadeira sociedade. Pois é ela que exprime verdadeiramente os homens. A consciência é o seu coração (Cf. Lacroix, p. 100), assim a verdadeira sociedade rousseauniana é resultante da união dos corações dos homens.Por fim, ele declara que para Rousseau a consciência tem em sua natureza um caráter positivo. Porém, para que ela seja utilizada, ela depende da escolha do homem, que pode não ser boa.
Já Derathé, no texto “O racionalismo segundo Jean-Jacques Rousseau” elabora uma análise sobre o pensamento rousseauniano comparando-o com o pensamento dos filósofos chamados de Jurisconsultos que são: Purfendorf, Barbeyrac e Burlamaqui. Derathé utiliza algumas teorias rousseaunianas, como a concepção de consciência e de lei natural, para explicar a questão de como o homem pode considerar mais seus interesses da alma do que os interesses da matéria. Ou seja, o que leva o homem a escolher o bem?(Cf. DERATHÉ, 1948, p 105-106)
Derathé parte inicialmente da identificação e separação da razão e da consciência. Segundo ele, Rousseau considera que a consciência é o sentimento que conduz o homem, sua alma. E esta seria completamente independente da razão, pois a razão é um sentimento que só aparece na natureza humana após o despertar de suas faculdades inatas potenciais. Porém, antes da saída do homem do completo estado de natureza, o homem já possui sentimentos que vem de sua alma e que orientado pela lei natural, determina aquilo que ele deve ou não fazer.
Assim, toda escolha do homem é o cumprimento da determinação da alma humana, que para Derathé é a consciência. Desta maneira, a consciência parece ser o amor inato do bem que são os sentimentos morais inatos. Desta forma, pode-se compreender que o homem primitivo já possui nele mesmo os sentimentos morais, não necessitando, portanto, da razão para escolher o que lhe seria bom ou não. Ou seja, o sentimento moral não carece da razão para existir ou se tornar ativo. No entanto este sentimento seria uma impulsão instintiva do homem que diz a cada homem o que lhe é bom ou ruim.
Porem, Rousseau não exclui o fato de que a razão compõe a lei moral, mas ela só se apresentaria ao homem a partir do estado de sociedade, ou pelo menos no momento em que o homem já tivesse despertado em sua natureza alguma faculdade. Assim o homem primitivo tem, segundo Rousseau, a lei natural que é uma lei imutável servindo de regra para as escolhas do homem em estado primitivo. É por esta lei que o homem receberá as primeiras orientações a sua consciência, possibilitando que ele sinta no fundo do seu coração, ou de sua alma, aquilo que é certo ou errado, bom ou mal.
Portanto, pode-se afirmar que na análise de Derathé sobre a questão da consciência em Rousseau, ele a coloca como a faculdade fundamentadora da moralidade. No entanto, esta ela é superada por uma determinação ainda maior e mais geral, que é a lei natural. É a lei natural que orienta o homem nas suas escolhas. Porém, ela não é a razão, mas um sentimento natural presente em todos os homens (Cf. Derathé, 1948, p. 94). É esta lei que diz a todos, anterior a existência de qualquer lei racional, o que deve ou não fazer.
O fato de que o homem natural possui uma lei natural determinada ou que se faz ativa pelo sentimento e não pela razão, se justifica, segundo Derathé, no fato de que em Rousseau a lei natural é o primeiro passo para a moralidade do homem. Mas, necessita da razão para se tornar ativa. Ela não poderia existir em estado de natureza, pois, o homem primitivo, como colocado por Rousseau, é um ser que não possui em si nenhuma ideia de razão. Esta faculdade é apenas uma potência inata neste momento. Então a lei natural teria uma característica apenas sensitiva, segundo Rousseau (Cf. Derathé, 1948, p. 89).
Assim, a questão levantada por Derathé sobre o que levaria o homem a escolher aquilo que fosse para ele um bem moral em detrimento de uma escolha que o levasse a um bem material, está no sentimento. Pois, o homem tem como motivação à ação a sua vontade que em Rousseau tem origem no sentimento de prazer e saciedade que está no homem anterior a qualquer outro princípio. Essa busca pelo sentimento de saciedade e prazer se liga diretamente ao sentimento de amor de si que para Derathé se compõe de dois princípios: amor de si e piedade. E é o amor de si que move as ações humanas (Cf. DERATHÉ, 1948, p. 98).
Sobre a piedade, segundo Derathé, Rousseau teria utilizado este termo em duas formas distintas. Primeiro no Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens, em que o genebrino a utiliza em contraposição ao amor de si. Depois, no Emílio, como uma derivação do amor de si. Porém, este não é aqui o tema central sobre o qual trata o texto de Derathé.
Desta forma, percebe-se então que o homem rousseauniano age motivado pelo interesse pessoal. Assim, a boa ação dá ao homem um sentimento de satisfação e felicidade (Cf. DERTHÉ, 1948, p. 104). Porém, cabe questionar o motivo que leva sempre a sentir o que é bom moralmente como àquilo que é também prazeroso? Parece, então que neste ponto, a concepção rousseauniana tem a incumbência de explicar a relação entre o prazer individual, a moralidade e a lei natural.
A lei natural é vista por Rousseau como uma orientação da natureza que determina o certo e o errado, fornecendo ao homem sentidos e sensações que indique a ele aquilo que ele deve ou não fazer. Então, é a partir de um sentimento de prazer interior a ele que todo homem saberá o que é bom ou ruim.
Pode-se afirmar que em Rousseau a vida moral está diretamente ligada ao sentimento. Inclusive, Derathé afirma que para que se inicie uma educação moral é necessário que haja neste ser algum desenvolvimento dos sentimentos (Cf. DERATHÉ, p. 107). Porém, se a vida moral, segundo Rousseau, tem suas bases na sensibilidade humana, a razão é a luz que guia esta sensibilidade que é uma impulsão do homem para agir. Assim, a razão se efetiva enquanto parte ativa da vida moral. Rousseau, segundo Derathé, coloca que a moralidade somente surge a partir da idade da razão. Mas, sendo desta forma, talvez seja cabível questionar o que iria guiar o homem antes da idade da razão? Seria neste estado necessária a presença de algum guia?
No tópico IV do texto em questão, Derathé busca finalmente entender qual é a interferência, ou a relação entre a razão e a constituição da vida moral do homem. Como já colocado anteriormente, pode-se perceber que para Derathé a vida moral do homem rousseauniano tem como base a sensibilidade. Porém Rousseau não exclui o papel da razão nesta relação. Se é a sensibilidade que guia o homem, é a razão que fornece a ele as luzes necessárias para que sua ação seja boa. Isso inclusive fica mais claro quando Derathé coloca que segundo Rousseau não há nenhuma moralidade anterior a razão (Cf. Derathé, 1948, p 107).
                Derathé chama atenção para outra característica do pensamento rousseauniano. A seqüência como se desenvolve as faculdades no homem. Por exemplo: a moralidade só desperta no homem a partir da ação da razão, que também só irá despertar a partir da ação da perfectibilidade, e assim por diante. Então, os verdadeiros sentimentos são na verdade o resultado da união dos impulsos naturais ao homem e do conhecimento que resulta da reflexão. Ou seja, o que leva o homem primitivo a agir de acordo com o que é bom, não é a consciência do bem, pois ela ainda não despertou, mas uma impulsão natural que todo ser possui e que não necessita de nenhuma faculdade para ser ativado. Por isso, Derathé afirma que “a consciência e a razão se completam” (DERATHÉ, 1948, p. 109).
É também a razão que Rousseau responsabiliza na formação de um homem virtuoso e justo. Segundo a compreensão de Derathé, é através da união entre a razão, a consciência e a liberdade que o homem poderá se libertar das paixões. Assim, o homem justo e virtuoso é aquele que consegue dominar suas paixões, mantendo a vontade individual submissa a vontade geral. E apesar de Rousseau considerar que o homem virtuoso não existe, ele ainda assim o caracteriza como sendo aquele que consegue impor as suas paixões e vontades a racionalidade. É também desta mesma maneira que se dá a vida moral para Rousseau. Através da união entre o instinto e a razão.Segundo Derathé a lei, tanto natural quanto a lei civil, seria em Rousseau uma ferramenta para auxiliar o homem nesta mudança. É pela submissão do homem que ele passará a ser livre, livrando-se de suas paixões.
Enfim, pode-se notar que entre compreensão de Lacroix e Derathé sobre o pensamento rousseauniano, há tanto pontos em comum quanto contrários. Os pontos em comum do pensamento desses dois estudiosos da concepção rousseauniana presentes neste texto que podem ser citados agora estão relacionadas a definição de consciência em Rousseau. Ambos compreendem que a consciência é em Rousseau uma faculdade presente no homem inatamente, mas que em estado de natureza, ela estaria apenas em forma de potencia, como foi melhor explicitado no capítulo desse texto dedicado a consciência.
Outro ponto de convergência entre as concepções desses teóricos é a ligação entre consciência e razão. Tanto Lacroix quanto Derathé compreendem que na concepção rousseauniana de consciência e a sua relação com a formação da moralidade do homem a razão apesar de não ter uma função definitiva. Ela aparece como uma orientação do homem a perceber o que é bem ou mal. Ambos também concordam com o fato de que a razão não é em Rousseau uma faculdade ativa no homem primitivo. Assim, é necessário que haja primeiro o despertar desta faculdade para que a partir do momento em que se torna ativa ela possa agir em conjunto com a consciência. Assim, parece cabível que a seguinte afirmação de Derathé se estenda a Lacroix: “a razão e a consciência se completam” (Derathé, 1948, p. 109). Além disso, eles também compreendem que a consciência em Rousseau é um sentimento. E, lembrando que Derathé considera que o homem age de acordo com os seus sentimentos, então, eles concordam que o homem age em acordo com a consciência.

Conclui-se, portanto, que o pensamento de Lacroix e Derathé se complementam. Pois percebe-se que no texto de Lacroix a consciência é analisada enquanto a sua origem e concepção. E Derathé parece concentrar-se na questão da influência da consciência sobre a vida moral do homem. Essa consciência que é sentimento, iluminada pela razão que conduzirá o homem a vida moral.

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